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Em obra literária, “Buriti” simboliza personagem principal

Pesquisa mostra o erotismo no texto do livro no qual a palmeira do buriti é um elemento fálico

Engana-se quem imagina que as palmeiras de miriti são exclusivas da Amazônia. A árvore imponente está presente em vários ecossistemas brasileiros e sua presença no Cerrado aparece na novela “Buriti”, parte do livro Corpo de Baile, lançado em 1956, pelo escritor João Guimarães Rosa. O pesquisador Silvio Holanda, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA), analisa a erotização presente no texto, no qual o buriti é um elemento fálico.

A trama se desenvolve na Fazenda Buriti Bom, pertencente ao Iô Liodoro, viúvo que sai durante a noite para conhecer mulheres e saciar sua apetite sexual e acaba se envolvendo romântica e sexualmente com a nora.

Buriti é elemento fálico - Devido sua imponência, há uma correlação simbólica entre a palmeira e o personagem principal da novela e, por isso, o Buriti dá nome a obra. “Ela simboliza o poder dele. Liodoro tem um poder masculino, um poder socioeconômico. Ele é o pai, o patriarca e aquela altivez do buriti representa isso. Assim, Não é a palmeira que dá importância a ele. Mas é ele quem dá importância à ela”.

Segundo o pesquisador da UFPA a escolha de Guimarães Rosa pelo Buriti não é aleatória. Ao contrário, por se tratar de uma árvore com grande altura, dimensão e importância socioeconômica há uma ligação direta entre suas características e a fertilidade e desejo de manutenção da ordem patriarcal de Liodoro. “É uma obra bastante ambígua porque parecia que tudo caminhava para o patriarcal, para o poder, a manutenção da tradição, aquela rigidez, os costumes, as regras.”

Erotismo feminino está presente - Mas acontece uma ruptura neste status quo, graças às personagens femininas da trama. “Na novela, as mulheres aparecem e querem ser sujeito de seus desejos, algo muito moderno. Elas não querem se tornar apenas objeto de desejo masculino e, ao invés de ser o assunto das conversas entre os homens, elas querem participar da festa masculina e falar do seu próprio desejo”.

Sílvio Holanda destaca como exemplo deste protagonismo feminino na obra o momento em que Maria da Glória, filha de Liodoro, busca uma noite de sexo fora do casamento. “Isso pra lógica patriarcal é totalmente estranho.” A personagem faz isso por saber da esterilidade do homem com quem mantém relação sexual, o que dá segurança à ela para se tornar infiel.

Mas se o erotismo masculino se destaca no texto, o feminino também é descrito pelo autor e aparece em alusão aos pântanos que cercam a propriedade. “Guimarães Rosa descreve o pântano como pegajoso, gosmento e o faz com uma carga erótica incrível porque este lugar está, na verdade, simbolizando a genitália feminina. Não é aquela natureza bonitinha ou harmoniosa, mas uma natureza que, de certa maneira, ecoa profundo erotismo das próprias figuras, um erotismo que normalmente não está nas coisas, mas em seus significados”, detalha Sílvio Holanda.

Relações proibidas apimentam a novela de 1956 - Outro momento de destaque para o erotismo feminino é a relação íntima entre Maria da Glória e Lalinha, cunhada dela e nora de Liodoro. “Há um envolvimento, uma coisa muito leve, muito sutil, não um grande envolvimento. Embora, exista uma cena de toque e de carícia. Então é algo instigante pelo ano em que ela foi publicada, em 1956.”

Lalinha também é uma personagem importante, porque após ser deixada pelo marido, se envolve em um jogo instigante e repleto de provocações com seu próprio sogro, o que resulta num envolvimento entre eles. “Eles instigam o seu próprio desejo. Apesar de ser um homem sexualmente ativo, o Liodoro está alucinado por essa sexualidade tão forte e proibida. Algo que não deveria ocorrer ali na casa, porque teoricamente o Liodoro, como sogro, a deveria proteger. Ele o faz, mas acaba também se envolvendo com ela. Eles ficam naquele jogo erótico e ficam cada vez mais próximos, até que eles se envolvem completamente.”

Segundo o professor, o erotismo na obra está relacionado a interdição, ao proibido que passa a ser quebrado pelos  interditos na obra. Em uma contraposição aos valores tradicionais presentes naquele momento histórico e trazendo a tona os mais profundos desejos humanos. “É interessante nessa perspectiva, o buriti porque, na ficção, vai representar, ao mesmo tempo, a natureza e a cultura, as polaridades, a interdição e o erotismo do que é proibido, e aquilo que, apesar de proibido, é praticado.”

Além de alimentar, o buriti oferece mais - Nesse sentido, o buriti toma mais um significado por meio do vinho de buriti, como diz na obra “O vinho-doce, espesso, no cálice, o licor-de-buriti, que fala os segredos dos Gerais, a rolar altos ventos, secos ares, a vereda viva.”

Sílvio Holanda explica que “a árvore, pensando economicamente, deveria só prover subsistência humana, mas não, ela simboliza também o desejo e, na verdade, haveria outros usos que não aquele próprio para a manutenção. Porque aí surge o vinho do Buriti. Claro que o vinho pode alimentar, mas vinho é o supérfluo, é aquilo que não é da ordem do primário ou da necessidade imediata do alimento. E ainda tem a questão de ser um estimulante.”

Outra questão que o professor destaca é a correlação entre os sete textos da obra Corpo de Baile. Em reedições posteriores, Buriti foi agrupada em “Noites do Sertão” com outras obras que destacam a noite como cenário fundamental para descrever as relações humanas. “Porque a noite é o período que as pessoas se entregam. Não mais estão trabalhando, então, se entregam ao devaneio, ao amor, ao sexo.”

Outras partes da obra reforçam questionamentos e sexualidades - Esse diálogo entre as obras também aparece no personagem Miguel, que é o Miguelin em Campo Geral, também de Corpo de Baile. Ele vem em busca de Maria da Glória. No entanto, apesar de “se gostarem”, a obra finaliza de uma forma em que não fica claro se eles ficaram juntos ou não. Ao mesmo tempo, o enredo revela que Maria da Glória não idealizou um “príncipe encantado”.

“Ela se negou a seguir o script patriarcal: ‘o pai escolhe e uma vez o marido escolhido cabe a filha apenas esperar por ele’. Ela não faz nada disso, ela gosta muito do Miguel, mas ela não ficou esperando. Por isso, ela perde a virgindade e ainda assegura: ‘não é pra acontecer com todas?’”, reforça o pesquisador de Letras da UFPA.

Enquanto Miguel tem algumas de suas expectativas frustradas. “Ele vai pra lá em busca da Glória, mas algumas coisas já acontecem porque é óbvio que a expectativa do Miguel é encontrar uma Glória virgem. Ela, porém, não é mais virgem e a obra termina. Eles gostam muito um do outro, mas a obra termina sem que ele saiba.”

Guimarães Rosa e o cenário do sertão - Uma trama intensa, que mostra a marca registrada de um dos grandes nomes da literatura brasileira, que explorou bastante o regionalismo. “Sempre que se fala dele se fala no regionalismo, mas na verdade ele não quer uma imagem cristalizada, parada, imóvel das coisas, um sertão que nunca muda. Ele não fala de uma volta ao passado. Ele fala daquele espaço, mas um espaço que está em processo de mudança e reinvenção”, acredita Sílvio Holanda.

Para o pesquisador a opção pelo uso do buriti como símbolo erótico revela o papel que a literatura tem na vida dos homens. “O buriti é uma força vital, mas ele também é um símbolo da cultura porque ele representa o poder, o poder do homem, o poder do proprietário. E, paradoxalmente, representa tudo isso: natureza, cultura, interdição, erotismo. Forças que são antagônicas. O papel da literatura é esse: mostrar como o imaginário das pessoas está ligado aquela árvore.”

Texto: Ronaldo Palheta – Assessoria de Comunicação da UFPA
Publicado em: 26/08/2015
Unidade: Faculdade de Letras da UFPA
Status: Pesquisador Sílvio Holanda disponível para entrevistas.
Leia aqui um artigo escrito pelo pesquisador e seu orientado, Brenno Oliveira.

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