Botos são pais de meninos e meninas na Amazônia
Pesquisadores da UFPA falam sobre os “filhos de boto” e a importância deste animal mítico
“Esse ‘Zinho’? Esse é filho do boto!”. Histórias de filhos que nascem a partir de casos de amor entre o boto e as mulheres da Amazônia são famosas na região e, do ponto de vista das populações tradicionais, “engravidar de um boto não é um absurdo lógico”. É o que explicam os pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) Romero Ximenes, Socorro Simões e Angélica Rodrigues.
O antropólogo Romero Ximenes argumenta que em todas as culturas a parentalidade (a maternidade ou a paternidade) advém de papéis sociais que não se limitam à questão biológica e estão influenciados por contextos políticos, históricos e culturais. “Por isso há uma variedade de definições sobre paternidade que pode ser quem gerou o filho, quem registrou a criança, quem cuidou da criança ou a adotou como sua”.
Relação homem-natureza permite “filhos de boto” - Além desta dimensão, ele explica que para entender os “filhos de boto” é preciso perceber que essa realidade é crível a partir do ponto de vista cultural das comunidades tradicionais da Amazônia. “Essa cultura parte do pressuposto de que homens, animais e plantas possuem uma mesma natureza. É como se o mundo fosse um baile à fantasia. Neste momento, posso estar fantasiado de homem, esta planta está fantasiada de açaí e aquele ser correndo na beira do rio está vestido de capivara. Mas, como uma roupa, é possível mudar e se transformar em outra coisa. É possível, assim, se metamorfosear”.
Essa perspectiva, assim, influencia as relações estabelecidas entre o homem e a natureza e permite que humanos se relacionem romanticamente com animais, se transformem em animais e plantas e vice-versa. “Por isso não é um escândalo ou irreal ter um filho de boto ou ser filho do boto, da mandioca, da capivara, da cobra-grande. Isso porque a lógica que fundamenta a cultura ocidental é diferente da perspectiva cultural das populações tradicionais, caboclas e indígenas da Amazônia. Se no Ocidente o homem é diferente dos animais e superior a eles, na cultural regional todos os seres vivos estão interligados e possuem a mesma essência”, conta Romero Ximenes.
O antropólogo explica ainda que nos mitos da Amazônia co-existem a dimensão mágica e real dos seres. “Conta-se a história do boto e se mostra o animal, o que prova sua existência e, de certa perspectiva, torna sua existência e atributos mágicos irrefutáveis”.
Não é mentira - Romero Ximenes também reitera que uma mulher que afirma ter tido um filho de boto não está mentido. “É algo difícil de mensurar por ela declarar uma situação que vivenciou, interpretada a partir de seus significados e convicções mais profundas. Ela acredita que na festa, no trapiche ou na beira do rio encontrou um homem sedutor e envolvente que era um boto e que a seduziu, pois, homens comuns não despertam paixões tão arrebatadoras. A afirmação é coerente com a cultura e realidade desta mulher”.
O pesquisador da UFPA também reitera que no momento de registrar esta criança no cartório pode haver um conflito de percepções entre a mãe e o agente do cartório. “O cartorário está submetido a uma outra cultura e às leis desta cultura, as quais não poderiam admitir que um menino seja filho de um golfinho do rio. Por isso colocam ‘pai desconhecido’. Mas a mãe sabe de quem é o filho dela: do boto!”.
Ele também reitera que os filhos de boto não se restringem apenas as crianças de “pai indeterminado”, pois, “mesmo convicta de que o filho foi gerado por uma relação sexual com o boto, mulheres que têm namorados, noivas, casadas ou recém-separadas também podem atribuir formalmente a filiação ao seu companheiro ou ex-companheiro, apesar do que acredita”.
Grande parte das narrativas orais contadas na Amazônia são sobre o boto - A pesquisadora Socorro Simões coordena o Programa de Estudos Geo-BioCulturais da Amazônia - Campus Flutuante da UFPA e projeto “O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia” (IFNOPAP), o qual já registrou mais de 5,3 mil narrativas contadas no Pará.
“Não temos um levantamento estatístico sobre quantas destas narrativas são sobre o boto ou quantas versões da lenda existem, pois ainda estamos analisando muitas delas, mas, apenas na região do Médio e Baixo Amazonas, das 38 histórias diferentes coletadas, um terço é sobre os botos”. As lendas são mais comuns e diversas conforme o relacionamento mais íntimo que a comunidade mantém com os rios.
Gerar filhos não é a “intensão do boto” – Ela ressalta que, nas narrativas, apesar de homens e mulheres se relacionarem sexualmente com os botos há uma diferença marcante na forma como esse envolvimento acontece. “Os pescadores se relacionam sexualmente com o boto feminino enquanto animal, o que não é aceito e muito criticado. Já as mulheres não têm consciência, no momento do romance, que estão lidando com um boto, pois ele está metamorfoseado em homem e, por sinal, é sempre um homem muito atraente, charmoso, bem afeiçoado e diferente dos demais”.
A pesquisadora ressalta que as mulheres que se envolvem com o boto não conseguem resistir ao encanto do sedutor, pois estão “mundiadas”. “Há uma narrativa em que a moça fica distante e se encanta tanto com o boto que sai da cidade e viaja em uma embarcação. O boto a segue como animal e, num dado momento, ela se atira dentro do rio atrás dele e desaparece. Ou seja, quem se apaixona pelo boto não está em seu estado normal. É comum que as famílias digam que elas estavam pálidas, distantes ou ficando doentes devido a intensidade do sentimento”.
Socorro Simões também explica que nas diversas narrativas o objetivo do boto é apenas se relacionar com as mulheres e não gerar filhos com elas. “Parece-me que ele busca relações fortuitas e de todas as histórias recordo de apenas uma onde o boto vem atrás do filho gerado. A narrativa se passa na cidade de Moju e fala de uma senhora cujo marido pescador sai para trabalhar. Ela ouve um som dentro de casa e imagina que é o marido, mas então vê o boto metamorfoseado em homem e este lhe diz: “eu vim buscar o que é meu”. Ele, então, pega o filho e se afasta. Quando o marido volta, a mulher já perdeu a razão”, conta.
Vida a beira do rio fundamenta imaginário mítico - Para ela, afirmar que os filhos são filhos de boto pode ter várias razões, o que inclui a crença das mães nesta relação mítica, mas também a busca por uma tentativa honrosa para a aceitação social de uma criança gerada em situações que, de outra maneira, não seriam aceitáveis. “Dito isso, o filho do boto, nas narrativas não permanece entre os homens. Em geral, ele em algum momento se joga nas águas, se metamorfoseia também e vira boto”.
Socorro Simões também revela o fascínio do modo de vida das comunidades tradicionais, o qual permite conviver com seres mágicos como o boto. “Esse imaginário faz parte de uma relação com a natureza, uma relação mais íntima, em uma vida a beira do rio. Nesta mesma natureza que o alimenta e abriga, ele pensa na vida e vive sua imaginação. Assim, surgem as figuras míticas e os integrantes destas populações são privilegiados, pois, seu imaginário advém desta rica e complexa relação com o meio ambiente”.
Boto mítico tem importância ambiental para a Amazônia - Por outro lado, a bióloga Angélica Rodrigues, integrante do Grupo de Pesquisa “Biologia e Conservação de Mamíferos da Amazônia” (BioMA) da UFPA explica que, embora do ponto de vista biológico não seja possível gerar filhos com o boto, a existência do imaginário sobre a interação direta e os atributos mágicos do golfinho fluvial são características únicas da Amazônia e que podem ter um importante papel para a promoção da conservação da vida aquática na região.
“Há escassez de informações acerca dos impactos sobre as populações naturais de botos, relacionadas ao aumento das áreas ribeirinhas e das pressões de novas modalidades de pesca, que usam o boto como isca, ou ainda sobre o mercado que comercializa parte do corpo do boto e do peixe-boi com fins mágico-religiosos”.
Na transmissão de conhecimentos sobre os animais e sobre os atributos mágicos que ele possui e na possibilidade real que existe, em cidades como Santarém e Mocajuba, de nadar e interagir diretamente com os botos, pesquisados pela bióloga em sua tese de doutorado, pode estar a chave para a promoção da conservação das espécies. Os botos são espécies de topo de cadeia e funcionam como bioindocadores, sendo estes fundamentais para a manutenção dos ecossistemas aquáticos
“Percebemos que embora os mamíferos aquáticos que ocorrem na Amazônia, ainda, sejam pouco conhecidos do ponto de vista biológico ou mesmo temidos por uma parte do público discente que estudei, poderão ser bem aceitos pelos estudantes através da articulação entre os saberes populares e científicos em programas conservacionistas. Estes programas devem garantir a manutenção do conhecimento local aliado à manutenção das espécies e do ecossistema do qual fazem parte. O público, sensibilizado quanto à importância da manutenção da diversidade biológica e conservação ambiental, pode auxiliar na divulgação das informações sobre os mamíferos aquáticos e, dessa forma, contribuir para a desconstrução gradativa dos valores negativos que permeiam este grupo de animais e sua conservação”, acredita Angélica Rodrigues.
Texto: Cléo Viana e Glauce Monteiro – Assessoria de Comunicação da UFPA
Publicado em: 07 /08/2015
Unidade: Faculdade de Ciências Sociais, Programa de Estudos Geo-BioCulturais da Amazônia - Campus Flutuante e Grupo de Pesquisa “Biologia e Conservação de Mamíferos da Amazônia” (BioMA).
Status: Pesquisadores Romero Ximenes, Socorro Simões e Angélica Rodrigues disponíveis para entrevistas.
Fotos: BioMA e Agência Pará
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